Chinestesia

Herói (2002), do diretor chinês Yimou Zhang (o mesmo de Lanternas Vermelhas e O Clã das Adagas Voadoras), tem sido celebrado pela imprensa especializada como "talvez o mais belo filme de todos os tempos" ou ainda "a obra-prima do cinema chinês", mas infelizmente esses epítetos vagos têm pouco a dizer sobre um filme que é, no mínimo, singular em sua combinação certeira de entretenimento épico com inventidade estética. Com os mesmos requintes técnicos de filmes como Gladiador ou Tróia (eu diria até melhores), Herói deixa de lado o esquemão da narrativa épica hollywoodiana e adota um estilo que nada fica a dever a filmes como Rashomon, de Akira Kurosawa, ou Era uma Vez no Oeste, de Sérgio Leone, sobretudo no que esses filmes têm de alinear e fragmentário na maneira de contar uma história.

O roteiro em si não diz muita coisa: na China anterior à construção de suas famosas muralhas,
um imperador oferece uma portentosa recompensa àquele que exterminar três temíveis guerreiros que desejam assassiná-lo. Surge então, às portas do palácio desse imperador, um guerreiro conhecido como Sem Nome (Jet Li) para relatar seus feitos e reclamar sua recompensa. E é justamente desse relato ao imperador, com suas idas e vindas no tempo, que resultam toda a magia e complexidade de Herói. Num procedimento de flashbacks semelhante ao utilizado em Rashomon, o filme vai pouco a pouco escamoteando a verdade sobre os fatos ocorridos de modo que o espectador também aos poucos vá juntando as peças desse mosaico complexo e sutil. Não à toa, o imperador deixa escapar sua admiração pelo guerreiro após a primeira parte de seu relato: "O quão sutil é tua espada!"

A dimensão mitológica que assumem os personagens desse filme é também algo de
extraordinário e que merece ser comentado. Diferente da caracterização rasteira de Aquiles feita por Brad Pit em Tróia, em Herói a força mítica de seus personagens é resgatada de maneira exemplar através dos relatos fragmentados fornecidos pelo guerreiro Sem Nome. Recorrendo à técnica empregada pelo poeta grego Homero na Ilíada e na Odisséia -- duas verdadeiras "bíblias" do gênero épico -- os personagens se deixam conhecer num primeiro momento apenas pelos relatos de terceiros acerca de seus prodígios, realçando assim a aura dos mesmos.

Deixando de lado o aspecto homérico da narrativa, talvez o maior responsável pela imensa popularidade do filme (diga-se de passagem o primeiro filme chinês a liderar as bilheterias dos EUA) seja mesmo a plasticidade com que as cenas, sobretudo as de combate, são filmadas. Partindo da premissa de radicalizar a coreografia das seqüências de luta (indo além de seu precursor, O Tigre e o Dragão) Herói prima por momentos de pura epifania, valendo-se para tal do emprego ostensivo de câmeras lentas, closes e cenas filmadas em branco e preto, bem como de uma utilização racional do som, quando, por exemplo, o ruflar dos tambores é interrompido durante o combate para dar lugar ao rumor da chuva caindo sobre o telhado, ou ainda para realçar a metáfora tecida entre a técnica da espada e a arte musical. Ou seja, tudo aquilo que um diretor como Quentin Tarantino sempre quis ser. Aliás, o diretor da saga Kill Bill, ao ver o filme, resolveu lançá-lo nos EUA mencionando seu nome nos créditos, "Quentin Tarantino apresenta...", como se tivesse de fato o produzido, embora ele mesmo em nada tenha contribuído para sua realização.

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