O discurso da paixão de Cristo

Trata-se de uma paixão segundo a imprensa brasileira, claro. Já foram "Je Vous Salue, Marie"(1985), "A Última Tentação de Cristo" (89) e agora "A Paixão de Cristo"(2004). Mas ao que tudo indica, desta vez a CNBB e seus bispos ficaram em cima do muro. Dizem que o filme é violento mas que cada um deve tirar suas conclusões. Os judeus, em contrapartida, reagiram raivosamente. Não puderam admitir que o diretor Mel Gibson tenha insinuado que os culpados sejam eles. O pessoal da CNBB diz, meio sem jeito, que o filme é fiel às Escrituras.

Henri Sobel deu uma entrevista outro dia. Disse, fazendo jus àquele sotaque horroroso, que se sentia ultrajado com o filme. Disse também que não sustentaria um boicote ao filme. Ele acha que deve ser facultado a uma pessoa assistir ou não-assistir. Quando se referiu ao papa, no que isso tudo poderia atrapalhar o diálogo judaico-cristão, disse que o papa teve uma reação ambígua depois que a sessão acabou. Mas será que o papa deu conta de assistir ao filme todo? Não terá tirado um cochilo?

O melhor momento dessa polêmica, como gostam de dizer na tevê, foi de longe a entrevista do Clodovil (RedeTV) com o psicólogo e advogado Jacob Goldberg (uma mistura de Kojak com Michael Berryman). Depois de defender sua visão dita purista das Escrituras e atacar a violência espetaculosa do filme, afirmou convictamente de que se trata de uma cruzada anti-semita. Clodovil, sagaz, terminou contrariando seu convidado que se esforçava para ganhar-lhe a simpatia: "o problema de vocês (disse voltando-se para Goldberg) é que vocês têm muito amor-próprio... ah se o brasileiro tivesse um amor assim, que país não seria este..."

Agora convenhamos: os judeus devem estar furiosos mesmo, tanto que apontam para uma linhagem reacionária dentro do Catolicismo à qual Mel Gibson pertenceria. E para piorar, digamos, a mesma Hollywood que eles ajudaram a construir e da qual são "acionistas" majoritários (desculpem o trocadilho), essa mesma indústria acabou servindo de veículo para a suposta mensagem anti-semita. Gostaria de saber o que o bom e velho Salomão teria a dizer sobre esse assunto...

O divino e o mundano em Marianne Moore

Marianne Moore mostrou o que a poesia poderia ser se não se chamasse poesia. Moderna, subversiva e fundamentalmente reacionária, sua obra é uma negação do lirismo convencional. Miss Moore era uma espécie de vitoriana culta dos tempos modernos. Tanto quanto pude deduzir de sua vida e sua obra sei apenas que era, antes de tudo, uma mulher boa de prosa (como dizem lá em Minas). Além disso, gostava de fazer sozinha suas visitas aos outros e tinha sempre o cuidado de "tomar sua presa em privado". Seus poemas são o momento privilegiado da combinação de uma observação aguda e contundente com o que há de mais frívolo ou supérfluo nesse mundo. Para ela a poesia nada mais era do que a expressão daqueles que realmente têm uma queda pelo genuíno, e só. Não tem pretensões míticas como seus antecessores tiveram. Sendo assim, sua poesia pode perder em plasticidade, metáforas bombásticas, mas em contrapartida seus jogos conceituais (que levam alguns a classificá-la como metafísica) e sua sintaxe desconcertante demonstram com pertinência como toda lógica está necessariamente imersa num grande vazio.

Porcos-joalheiros

O que amas de verdade permanece, o resto é escória (Ezra Pound, The Cantos, LXXXI)

As conseqüências mais indesejáveis de atirar pérolas aos porcos, já dizia meu velho amigo J., é que esses porcos, não raro, podem ser porcos-joalheiros. Isso acontece quando temos a impressão de que o sujeito cuspiu no prato que lhe oferecemos. Ou pior: os porcos joalheiros não fazem a menor idéia do que seja aquilo que lhes atiramos, mas sabem, segundo o ofício mesquinho da vida que levam, que aquilo tem um valor corrente (de uma jóia ou moeda). Assim, aquilo cujo valor está intimamente ligado à nossa pessoa, a estima que investimos nesses suínos ao presenteá-los com um objeto ou conhecimento, corre o risco de se ver barganhado diante de nossos olhos. A inveja encontra morada precisamente no desconhecimento da razão da felicidade do outro. Assim, invejosos, elegemos um responsável por essa felicidade, um objeto, humano ou não, o qual almejamos como chave para a felicidade nossa também. Contudo, no fundo não sabemos porque o outro é feliz com aquilo e quando temos esse objeto em nossas mãos só podemos desfrutá-lo parcial e superficialmente (e sempre na presença do outro, claro). Os porcos aos quais atiramos nossas pérolas são aqueles mesmos que outrora chapinhavam na lama da ignorância e insensibilidade, mas que sempre manterão essa relação especulativa em relação ao outro que invejam. Se aquilo agrada àquela pessoa, deve ser valioso então! Não serão eles os "atravessadores" da verdade?