Summer 2002

A canção não é exatamente a do Legrand; nem tenho visto nenhuma Jennifer O'Neill (com aquele ar dócil-delicado de menina comportada). Foi só há dois anos, e também não era aquela praia desbotada, em tom sépia (eu lhe digo que não era nem litoral norte paulista.) Ah, os dias eram longos e vazios, e chovia -- pelo que digo que era Ubatuba! -- e qualquer sentimento era leve e arredio como a brisa marítima que o solstício nos trazia à tarde, o rumor líquido das árvores, o choro encoberto pelo bramido das ondas. PS. talvez o candor do sol nos tenha abatido como ao Messieur Mersault, "O Estrangeiro," de Camus.

Ó me diga a verdade sobre o rancor

Que espécie de experiência compreende o rancor? Qual parte lhe reserva o ódio dentro das categorias da aversão? Se o que dizem da simetria diametralmente oposta entre ódio e amor for verdade, então seria o rancor uma variável da paixão recolhida? Ou pra ser mais contundente: ser impedido de odiar seria pior do que um interdito amoroso? Talvez ser impedido de amar nos fortaleça em nosso íntimo (à medida em que houver bastiões a serem derrubados mais forte será esse sentimento...)

Contudo, quais são as metas do rancor senão as de destruir seu portador? Que sentimento é esse que visa tão somente destruir o sujeito usando sempre um outro de tabela? Será que é livre feito um pássaro ou apenas um garoto? Será uma inveja daquilo que não somos? Será que ele vai pisar no meu pé dentro do ônibus? Ou ele será menos espalhafatoso, da ordem do ordinário, que se senta à nossa mesa, divide nosso teto e ainda ri conosco? Ó me diga a verdade sobre o rancor...

Rocco i suoi fratelli

Quando vai à farmácia é sempre aquele comprar ou não comprar... (seus filhos não estão doentes, mas talvez ainda um vá se gripar.) Sair no sereno sem agasalho nem pensar! Ou ainda: sem mim será que vão-se acostumar?

O amor é mesmo sistemático, e se em casa amor não há, o grande amor da mãe é sua prole (depois vem o quintal e a sala-de-estar...) E no meio da noite aquela angústia, um vazio implacável, a vontade dela e a do outro tão longe (duas coisas indistintas...) Será que ele vai-se lembrar de fechar a janela? Quem lhe fará uma sobremesa como a minha? E assim se levanta, pega um copo na cozinha, volta e se cobre. E antes de dormir ela se indaga: será que um dia vão conseguir uma esposa?

Folhas de Outono (Autumn Leaves)

Aonde quer que estejamos situados no mapa-múndi, seja nos trópicos ou nas zonas temperadas, as coisas decaem com o advento do Outono (em inglês, fall pode ser "outono" ou "declínio"). Ou talvez se queira formular assim: no Outono as coisas morrem. Ou talvez não morram necessariamente, talvez apenas durmam para na estação seguinte voltarem triunfantes (feito uma Fênix de folhas secas).

Mas do lado de cá do equador, embora não tenhamos frio nem tantas folhas no chão, também temos nossas épocas, e sabemos, como os antigos instintivamente o sabiam (vide a fábula da cigarra e a formiga) que pra tudo há um tempo, uma ordem na qual as coisas devem ser feitas. Antes de tudo, a vida requer preparo (para as alegrias e os infortúnios). E se o tempo muda e as árvores se agitam -- um vento frio nos corta o rosto -- sabemos, no aconchego do pensamento, que o Outono é o prelúdio que precede o Final. De modo que...

Os investimentos metafísicos

Amigo, se você quiser comprar seu lugar no paraíso, comece já a pagar suas parcelas (dividir é a melhor maneira pra quem não pode à vista). Já me explico: por que deveríamos dever uns aos outros se o exemplo de Jesus serviu justamente para que pudéssemos dar um calote coletivo? Enunciar "acredito em Deus" seria a assunção de uma dívida pública, um mea culpa? Só sei que nos dias de hoje há uma maioria que aprecia externar suas dívidas de gratidão por supostas graças alcançadas, mas até que ponto essa nota fiscal não foi super-faturada? E se engana quem pensa furtar-se à Receita: o nosso Deus credor é aquele mesmo que elabora nossa restituição, e ai do cristão que cair em Sua malha fina...

Countryside blues

Se há um mal a destacar nestes "tempos difíceis" (como diria Dickens) sem sombra de dúvida eu destacaria o banzo ou a saudade da terra natal... Não foram apenas os escravos portadores exclusivos desse sentimento de angústia, mas desde a simpática mineira bem nascida até o pernambucano acabrunhado a saudade se faz sentir aqui em São Paulo (e em tantas outras capitais) às vezes como dádiva e às vezes pura falta. Imagine para aqueles crescidos no campo ou cidadelas, acostumados com o céu cheio e sem as aparas de uma janela, viver em pombais-apartamentos...

Complexo de Dona Flor

É oito ou oitenta: se a vida é um romance do Jorge Amado, ou somos malandros ou somos farmacêuticos, podendo oferecer a essas flores tão somente nossa paixão ou nossa amizade, respectivamente. Ainda segundo essa oposição, podemos feri-las ou respeitá-las; educá-las ou sermos educados; sermos amados ou amáveis. Mas por que nunca as duas coisas juntas? Como saber? Na dúvida entre o que elas desejam ou precisam, a tática do "morder & soprar" seria a saída?