O mesmo

Conhece o rancor como à palma da mão. Obstinado, onde o ódio estiver ele irá. É um doido varrido, raivoso - tolo - que em seus dias mais doces pecou pelo mau gênio. É tão intenso que deixa tonto.

Desde que o conheci ouço dizer que vai escrever um romance. É curioso vê-lo organizar em fichas a vida de personagens que nunca entraram em cena e fazer versos que ninguém mais ousaria (míope leitor de si mesmo), essa espécie de camicase que ensaia a própria morte várias vezes, e que nunca termina o que se põe a dizer.

No osso

A expressão "chegar ao osso" não é banal nem gratuita: nos conduz à revelação última, íntima (caídos todos os véus); manifesta o desejo de atingir o núcleo duro, o tutano das coisas. Segundo a metáfora anatômica, "linguagem de medulas e espinhas". É a desconstrução do objeto até chegar à estrutura seca, ou o que o açougueiro faz quando livra a carne da gordura e atira o osso aos cães.

Abaixo, minha tradução (incompleta) para o poema Bone dreams (Sonhos ósseos), do poeta irlandês Seamus Heaney:


*

SONHOS ÓSSEOS

I

Osso branco encontrado
no pasto:
a áspera, porosa
língua do toque

e sua impressão amarela
grelhada na grama—
pequeno resíduo de um naufrágio.
Frio como pedra,

duro de encontrar, pepita
de giz
que toco outra vez
e a refresco

na atiradeira das idéias
para cravá-la na Inglaterra
e seguir seus saltos
em campos estrangeiros.

II

Casa óssea:
um esqueleto
nas velhas masmorras
da língua.

Refuto
com as dicções
os dosséis elisabetanos.
Os artifícios dos normandos,

as primaveras eróticas
da Provença
e o latim de hera
dos homens da igreja

ao som metálico
da pá, clarão
do aço consonantal
crivando a linha.

(...)