Leia o livro "Universo em Desencanto"

É o que repete Tim Maia no magistral "Tim Maia Racional", álbum pioneiro da música black brasileira, e que qualquer entusiasta desse gênero já deve estar careca de ouvir ou reverenciar. E pra não dizer que não falei das flores, Tim Maia, que depois se dedicaria a um estilo mais dócil e romântico, canta a plenos pulmões nesse álbum duplo, lançado depois que o cara foi deportado dos EUA ao ser pego com maconha. Esse "estágio" com os negros de lá foi mais do que suficiente para conferir-lhe a cadência e o swing inerentes ao soul e ao funk. Além disso, sua conversão a uma religião muy exótica, cuja palavra-chave é "racional", está presente em todas as faixas sob a forma de ensinamentos e pregações.

Trata-se de um álbum de conversão, o que vem corroborar a tese de que a boa black music e o protestantismo estão um para o outro como o corpo e a alma. E daquilo que poderia ser um porre para os dias de hoje (a mistura de ovnis e religião), Tim extrai inspiração para cantar apaixonadamente (no auge do seu timbre) acompanhado de músicos que fariam inveja até mesmo a um Fred Wesley e um James Brown. O vinil desse álbum é aquilo que chamam de "mosca-branca" e vale uma nota (como acontece com alguns discos do Jorge Ben, por exemplo). Vale dizer que o álbum foi lançado à época (1974) pelo selo SEROMA (criado pelo próprio SEbastião ROdrigues MAia) e que seu segundo volume foi lançado no ano seguinte. Para quem quiser baixá-lo no Kazaa, ele está todo lá. Que beleza!

A origem da inspiração

Algumas pessoas acreditam tanto na inspiração a ponto de, na iminência do ato criativo, até fazerem um alongamento como se diante de um esforço descomunal (respirando entre uma contração e outra.) Mas não nego se disserem que é verdade: é; é o semblante também daquele cantor que escuta a própria voz e se emociona; é o reconhecimento pelo criador da criatura. Não obstante, alguns acreditam que inspiração é apenas puxar o ar para os pulmões (o que não é mentira, devo argumentar...)

Isso não é verso, claro...

mas é quase prosa. Verso afasta os leitores, estão mais acostumados com o fluxo ideal do pensamento, não estão atentos à música das palavras nem à textura dos vocábulos -- estão mais preocupados em dizer alguma coisa, em verdade vos digo, messias da mensagem. O inferno está cheio de intenções.

O hieratismo indecifrável de Charles Mingus

Na corda bamba do blues Charles Mingus foi para o jazz o maior exemplo de modernidade compromissada com a causa dos antigos (a.k.a. roots ou raízes). Acima de tudo ele foi um mestre contrapontista, romântico e expressionista de uma maneira absolutamente diferente de seus contemporâneos do free-jazz. Aliás, Mingus ainda não está totalmente "free" pois sua dignidade e sensação de gratidão para com o passado impedem sua música de soar como outra coisa que não seja o blues.

Alguns adjetivos para a obra desse homem, sob o risco de obscurecê-la, poderiam bem indicar o atalho de sua poética profunda, extravagante, opulenta porém glamourosa, epifânica, solene, dramática... Dizem os jazzófilos que, ao morrer no México em 1979, centenas de baleias morreram encalhadas nas praias daquele país. E o fato de ter sido arranjador, compositor, intérprete e band-leader só me fazem pensar no quão hierático foi o recorte dessa figura (de boina e suspensórios), um homem de temperamento tão corpulento como seu próprio contra-baixo atrás do qual ele exortava os companheiros segundo seu humor (mood) não raro aguerrido, durante a batalha, como se tangesse as cordas de uma lira mais robusta e mais pesada.

A arte do desencontro

Este assunto, este assunto eu conheço bem... É uma arte (que uns almejam e outros julgam entender); é a sensação derrisória de quando pensamos que não há nada além de amor no mundo, mas que estou só; ou quando vislumbramos um destino cujo caminho não sabemos, pelo qual nunca passamos, até porque ele nos leva até nós mesmos.

*
Entre os amantes é necessário que os movimentos sejam contínuos e simultâneos. Como é impossível, bem sabido pela Física, dois corpos ocuparem o mesmo lugar ao mesmo tempo, coincidências deveriam ser malvistas.

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Tomemos um exemplo mais concreto: quando ele fez que ia, ela não quis. Fácil demais ser feliz, disse a si mesma, convém resistir (ela não via que o orgulho estava bem debaixo do nariz.) Mas tudo tem limite, e quantos sábios não se criam de improviso, ao passo que um dia ele cessou suas súplicas: dela não tardaram as réplicas (tudo muito súbito...) e daí para o mal que é relativizar a própria relação foi um passo (tudo muito súbito...) do concreto ao abstrato.

Summer 2002

A canção não é exatamente a do Legrand; nem tenho visto nenhuma Jennifer O'Neill (com aquele ar dócil-delicado de menina comportada). Foi só há dois anos, e também não era aquela praia desbotada, em tom sépia (eu lhe digo que não era nem litoral norte paulista.) Ah, os dias eram longos e vazios, e chovia -- pelo que digo que era Ubatuba! -- e qualquer sentimento era leve e arredio como a brisa marítima que o solstício nos trazia à tarde, o rumor líquido das árvores, o choro encoberto pelo bramido das ondas. PS. talvez o candor do sol nos tenha abatido como ao Messieur Mersault, "O Estrangeiro," de Camus.

Ó me diga a verdade sobre o rancor

Que espécie de experiência compreende o rancor? Qual parte lhe reserva o ódio dentro das categorias da aversão? Se o que dizem da simetria diametralmente oposta entre ódio e amor for verdade, então seria o rancor uma variável da paixão recolhida? Ou pra ser mais contundente: ser impedido de odiar seria pior do que um interdito amoroso? Talvez ser impedido de amar nos fortaleça em nosso íntimo (à medida em que houver bastiões a serem derrubados mais forte será esse sentimento...)

Contudo, quais são as metas do rancor senão as de destruir seu portador? Que sentimento é esse que visa tão somente destruir o sujeito usando sempre um outro de tabela? Será que é livre feito um pássaro ou apenas um garoto? Será uma inveja daquilo que não somos? Será que ele vai pisar no meu pé dentro do ônibus? Ou ele será menos espalhafatoso, da ordem do ordinário, que se senta à nossa mesa, divide nosso teto e ainda ri conosco? Ó me diga a verdade sobre o rancor...

Rocco i suoi fratelli

Quando vai à farmácia é sempre aquele comprar ou não comprar... (seus filhos não estão doentes, mas talvez ainda um vá se gripar.) Sair no sereno sem agasalho nem pensar! Ou ainda: sem mim será que vão-se acostumar?

O amor é mesmo sistemático, e se em casa amor não há, o grande amor da mãe é sua prole (depois vem o quintal e a sala-de-estar...) E no meio da noite aquela angústia, um vazio implacável, a vontade dela e a do outro tão longe (duas coisas indistintas...) Será que ele vai-se lembrar de fechar a janela? Quem lhe fará uma sobremesa como a minha? E assim se levanta, pega um copo na cozinha, volta e se cobre. E antes de dormir ela se indaga: será que um dia vão conseguir uma esposa?

Folhas de Outono (Autumn Leaves)

Aonde quer que estejamos situados no mapa-múndi, seja nos trópicos ou nas zonas temperadas, as coisas decaem com o advento do Outono (em inglês, fall pode ser "outono" ou "declínio"). Ou talvez se queira formular assim: no Outono as coisas morrem. Ou talvez não morram necessariamente, talvez apenas durmam para na estação seguinte voltarem triunfantes (feito uma Fênix de folhas secas).

Mas do lado de cá do equador, embora não tenhamos frio nem tantas folhas no chão, também temos nossas épocas, e sabemos, como os antigos instintivamente o sabiam (vide a fábula da cigarra e a formiga) que pra tudo há um tempo, uma ordem na qual as coisas devem ser feitas. Antes de tudo, a vida requer preparo (para as alegrias e os infortúnios). E se o tempo muda e as árvores se agitam -- um vento frio nos corta o rosto -- sabemos, no aconchego do pensamento, que o Outono é o prelúdio que precede o Final. De modo que...

Os investimentos metafísicos

Amigo, se você quiser comprar seu lugar no paraíso, comece já a pagar suas parcelas (dividir é a melhor maneira pra quem não pode à vista). Já me explico: por que deveríamos dever uns aos outros se o exemplo de Jesus serviu justamente para que pudéssemos dar um calote coletivo? Enunciar "acredito em Deus" seria a assunção de uma dívida pública, um mea culpa? Só sei que nos dias de hoje há uma maioria que aprecia externar suas dívidas de gratidão por supostas graças alcançadas, mas até que ponto essa nota fiscal não foi super-faturada? E se engana quem pensa furtar-se à Receita: o nosso Deus credor é aquele mesmo que elabora nossa restituição, e ai do cristão que cair em Sua malha fina...

Countryside blues

Se há um mal a destacar nestes "tempos difíceis" (como diria Dickens) sem sombra de dúvida eu destacaria o banzo ou a saudade da terra natal... Não foram apenas os escravos portadores exclusivos desse sentimento de angústia, mas desde a simpática mineira bem nascida até o pernambucano acabrunhado a saudade se faz sentir aqui em São Paulo (e em tantas outras capitais) às vezes como dádiva e às vezes pura falta. Imagine para aqueles crescidos no campo ou cidadelas, acostumados com o céu cheio e sem as aparas de uma janela, viver em pombais-apartamentos...

Complexo de Dona Flor

É oito ou oitenta: se a vida é um romance do Jorge Amado, ou somos malandros ou somos farmacêuticos, podendo oferecer a essas flores tão somente nossa paixão ou nossa amizade, respectivamente. Ainda segundo essa oposição, podemos feri-las ou respeitá-las; educá-las ou sermos educados; sermos amados ou amáveis. Mas por que nunca as duas coisas juntas? Como saber? Na dúvida entre o que elas desejam ou precisam, a tática do "morder & soprar" seria a saída?

Black Moses

É o nome de um disco do Isaac Hayes (que aliás não me canso de citar). A última que descobri dele, além dos funks de perseguição, ao que alguém pode retrucar "ah, só agora você soube?", é que a belíssima batida e o acompanhamento incidental da música "Glory Box" (aquela célebre do Portishead) foram sampleados de um clássico anterior do mesmo Hayes, "Ike's Rap II". Fiquei de cara porque o Portishead não mudou praticamente nada do que eu achava ser fundamental na canção -- o que coincide, por sua vez, com tudo aquilo que venho admirando na orquestração romântica e pungente de Hayes. Será ele uma espécie de profeta do romantismo black como se propõe, arrojado?

Este post destina-se, no mínimo, àqueles que conhecem pelo menos essa música do Portishead, Glory Box, ou aos interessados em música negra e suas influências (nada angustiantes). E aonde encontrar músicas desse Moisés preto? Dá-lhe Kazaa Downloads. Afinal, música é quase uma religião (é ouvir pra crer...)

Os credores do mundo: lições de economia sentimental

O que fazer para diminuir as taxas de inadimplência afetiva? Uma boa solução, já apontada por políticas sentimentais anteriores (os ditos "clássicos"), seria a declaração da moratória de uma dívida que todos sentem em relação ao mundo: isto é, precisamos acabar com os "credores do mundo". E para isso, infelizmente, vale a máxima "é preciso perdoar"... Um potencial credor do mundo é aquele que está sempre acusando seu parceiro econômico de "receber sem se dar", e com isso essa dívida pública acaba virando uma bola de neve. Há tantas pessoas (pelo menos eu conheço um monte) acreditando que a vida deve a elas alguma coisa... Qual a conseqüência? O banco central já mandou imprimir tantas notas promissórias para o desejo que o mercado hoje em dia está inflacionado de paixões, muitas das quais sem lastro nesse mercado simbólico que é o viver. E isso favorece a especulação... Estou sendo claro?

Não por mim...

Estão escrevendo canções de amor por aí graças a uma estrela que brilha lá em cima, mas que não brilha por mim... Com o amor me mostrando o caminho eu encontrei os dias mais cinzas que nenhum romance russo vai jamais reproduzir... Fui tolo quando caí, ficando desse jeito, e embora eu fracasse em esquecer do seu beijo, acho que não era mesmo pra mim...

PS.: antes que eu me esqueça, a queixa acima foi por mim livremente traduzida do standard jazzístico "But not for me", dos irmãos Gershwin, e tanto Chet Baker como Billie Holiday foram responsáveis pelas melhores versões desse clássico... (quem foi que disse que uma canção brilhante soa anti-natural se apenas lida ao invés de cantada?)

Cartas na mesa

Os naipes são o mais bonito: preto e vermelho, o veneno e o antídoto. E às vezes valem mais na mão do que na mesa. É uma questão de mostrar e esconder. Um carta na mesa é um ato de afirmação por excelência. Mas uma carta na mão é apenas uma carta. Aquele dia bebemos bastante, e como sou um novato no jogo de buraco, posso dizer que fui até muito bem. E é bem sabido que buraco é um jogo de gente que fala com desenvoltura, talento esse que não é pouco nos dias de hoje. Ou seja: é justamente uma boa conversação o que anima esse tipo de jogo (ou até quem sabe uma boa compra ou um bom descarte...) Mas daí dizer que "viver é saber comprar ou descartar" já é incorrer numa metáfora fácil e propensa a chavões à la "jogo da vida". Quem sabe viver seja um bluff?

Um estudo debochado sobre as relações entre "malhar" e "autoflagelar-se"

"Tanta gente tem o corpo tão bonito
mas tem a alma toda tatuada..."
(Nelson Cavaquinho/Guilherme de Brito)
Ir pra academia, correr, levantar pesos, suar, extenuar-se e olhar-se no espelho... e nada. Nada, dia após dia, nada, até que das cinzas de um mês árido, oprimido pelo suor e as anilhas, você se descobre impávido revestido de um bíceps, um tórax, um trapézio e um abdômen cuja definição pode fazer de você um "eleito". É aquela velha história (da carochinha): corpo são, mente sã. É mentira! como diz o padre "Queazedo". Não malhar traz culpa para alguns, isso é bem sabido. E eu não diria que a academia é uma igreja, mas sim um templo. E nele, sob constrição (de ferros e pesos), oramos com devoção, partilhamos do sagrado isotônico e ingerimos copiosamente as divinas proteínas.

Sabem que esse tema me inspirou um outro? Numa outra ocasião, farei uma palestra sobre "tatuagem & atitude".

Mise-en-scène e saídas de estilo

O que fazer quando a inspiração não ajuda? Ou como proceder quando a técnica fica desorientada sem ter no que se aplicar? "Não tenho nada a dizer mas estou dizendo" (John Cage), mas não é bem esse o caso: é claro que se diz algo quando alguém se põe a dizer alguma coisa. É óbvio e insofismável.

O que fazer então quando já se disse o bastante? Calar? Qual o momento certo para abandonar a cena, o campo ou o palco, seja o que for, mas quando? Quando dar a vez aos coadjuvantes? Seja a chave de ouro de um soneto ou um pedido de substituição no segundo tempo, o que caracteriza um bom arremate? Será a idéia de desfecho uma obsessão na América? Hollywood, por exemplo, acredita que um bom desfecho só pode vir depois de um grande clímax. Já a escola francesa, de um modo geral, recorria a um fade silencioso e polido. E o que dizer de Charles Chaplin então, que criou uma grande tradição de vagabundos cinematográficos que sempre acabam tristes e sem a mocinha? Aliás: quem tem medo de finais felizes?

"Pois, se é verdade que aqueles

que são escravos de sua melancolia, seres engolfados em suas mágoas, revelam uma série de fragilidades, é igualmente verdade que a diversificação de melancolias, variação na tristeza, refinamento na mágoa ou luto são a marca de uma humanidade que seguramente não é triunfante, mas sutil, combativa e criativa."

Julia Kristeva, in Black Sun.

Infelizmente não temos muitas dessas por aqui. E se nunca a vimos, então a palavra é obscura. Segue uma tentativa de tradução:

A AVELEIRA EM FLOR


Em meio
ao
verde

velho
e firme
brilho

de um ramo
partido
vem

doce e
branco
Maio

outra vez.


(William Carlos Williams, trad. Edgard Murano Fares Filho)

A nostalgia do Isley Brothers

Como não poderia deixar de ser na Black Music, os irmãos Isley começaram cedo a veicular suas canções cheias de cor e de alma através do estilo soul... Mais tarde, porém, esse pequeno trio em família cresceria e na década seguinte seria responsável por um sem número de hits que, embora vendessem muito bem, carregariam para sempre a marca registrada do conjunto: falsetes, arranjos suntuosos, romantismo e muito funk (tudo isso sem concessões). Vale lembrar: um tal de Jimmy James contribuiu muito para a formação inicial do conjunto (ele mais tarde trocaria o "James" por "Hendrix"...)

O som desses caras, sem dúvida, remonta a um tempo que de fato não vivi (mas que hoje começamos a viver novamente com a ressurgência do estilo) quando os djs queriam deixar um clima mais romântico botando um Isley ao fundo. Canções como "Contagious", por exemplo, de repente trazem de volta toda aquela atmosfera dos anos 70 com um ritmo que oscila entre o charme e o funk. Ou melhor: imaginem uma manhã de sol na periferia, você descendo pra Santos no seu opalão bege ouvindo Isley Brothers (ah já não fazem mais black como antigamente...)

Numa noite chuvosa...

Em sp, quando chove, há uma perceptível ressurgência de leads do tipo "chuva castiga sp" (um castigo para quem lê, obviamente). Mas embora falte criatividade para a imprensa comunitária, como ficar indiferente à inspiração de uma noite chuvosa?

Rastro

Ó, Senhor, livrai-me do homem de intenções excelentes e coração impuro: pois o coração engana e é desesperadamente malicioso (T. S. Eliot, Corais de "O Rochedo")

Ah, se essa vida é uma trilha que a gente não sabe aonde vai dar, há certamente sinais pelos quais podemos nos guiar. Mas cuidado: muitos são os falsos sinais que não passam de desvios, percalços, atalhos... Desse modo, deixam de ser úteis e de rastro passam a ser resíduo, detrito. Ou seja: eu falo das pessoas que nos legam, por onde quer passem, o rastro peculiar de sua existência...

Em verdade vos digo: convém vivermos da maneira mais sutil e concisa, sem deixar indícios inúteis às nossas costas (sem deixar lixo). Não é à toa que o tal desodorante tinha o nome de "rastro" (uma fragrância só deve ser sentida quando chegamos bem perto de sua origem, nunca à distância...)

Há pessoas que vivem esbaforidamente e suas maneiras são tão suaves como as de um tornado. Destruir é mais fácil do que criar, eis a máxima do zagueiro na defensiva (e o sentimentalismo vem depois). Abaixo a procrastinação!

Para esses que têm mordomos mas não têm amigos, eu digo: não adiem seu destino. Não temos mordomos mas temos amigos. Axé, velho Ezra!

A falta de assunto,

eis o que me incomoda, mas não tenho saída. Falar sobre música de novo? E quer coisa mais manjada do que falar da própria impotência diante da Musa? Viagra? Sexual healing? Falar sobre o que então? Pegar uma notícia na Reuters, por exemplo, e parafraseá-la? (better mendacities than the classics in paraphrase!) Se o que chamam de história é fofoca, então o jornalismo é uma fofoca ainda mais mesquinha: porque se a história é um inventário dos deslizes da humanidade, então o jornalismo é uma lista de supermercado dos deslizes da sociedade (ou da comunidade).

Falar sobre cinema... haja saco. E só pra registrar: fui ver o "Cristo" de Mel Gibson e digo a vocês com convicção, don't believe the hype. Já viram aqueles caras que se penduram por ganchos cravados na pele? Acho que nem só eles gostaram do filme. A paixão do Jesus de Gibson é por sangue e efeitos especiais. Mas vai ver que era isso o que ele queria mesmo. Talvez tenha sido uma saída retórica usada pelo diretor para resgatar a suposta mensagem religiosa que há muito tempo vem sendo soterrada pelo mito edulcorado cristão de um Jesus que morre doce e gloriosamente. Aqui no Brasil, e fica a sugestão, que tal se fizessem uma "Paixão de Tiradentes"? Aliás, meu pai me disse ao telefone que achou o filme "horrível". Ah, amarga doutrina a de ter uma opinião formada sobre cinema!

O virtuosismo do jazz está de volta

Pra quem acha que o jazz é uma espécie de arte perdida, remota, em verdade vos digo que ele está de volta... Era justamente isso que o bebop procurava: o caráter excludente do virtuosismo. Charlie Parker disse que o bebop não era jazz e, de fato, seu estilo era praticamente impossível de ser imitado à risca. É só pensarmos em John Coltrane, Sonny Stitt, Thelonious Monk... Contudo, logo o jazz seria tolhido pelo vício maneirista, cheio de chavões e riffs manjados, sob o pretexto de um "intimismo" ou "suavidade". Penso que o verdadeiro jazz ou blues ou r&b (seja o que for) ainda está vivo e continua com aquele seu mesmo caráter de busca e superação (de novidade, diga-se de passagem) mesmo que o objeto dessa busca seja cada vez mais abstrato. Vejam: agora são os djs aqueles músicos hábeis de outrora. O imaginário mudou. Se numa outra época eram usados riffs de guitarra ou de sax, hoje os temas são retomados como samples. Os "motivos" dessa cultura do negro na américa deixam de ser standards e voltam à tona sob a forma de loops numa bricolagem sonora (uau, nunca usei tantos estrangeirismos num só parágrafo!). Isso pra não falar do supra-sumo estilístico do "scratch", qual seja, do registro mais cabal para o ouvinte de que ele está ouvindo o passado...

O discurso da paixão de Cristo

Trata-se de uma paixão segundo a imprensa brasileira, claro. Já foram "Je Vous Salue, Marie"(1985), "A Última Tentação de Cristo" (89) e agora "A Paixão de Cristo"(2004). Mas ao que tudo indica, desta vez a CNBB e seus bispos ficaram em cima do muro. Dizem que o filme é violento mas que cada um deve tirar suas conclusões. Os judeus, em contrapartida, reagiram raivosamente. Não puderam admitir que o diretor Mel Gibson tenha insinuado que os culpados sejam eles. O pessoal da CNBB diz, meio sem jeito, que o filme é fiel às Escrituras.

Henri Sobel deu uma entrevista outro dia. Disse, fazendo jus àquele sotaque horroroso, que se sentia ultrajado com o filme. Disse também que não sustentaria um boicote ao filme. Ele acha que deve ser facultado a uma pessoa assistir ou não-assistir. Quando se referiu ao papa, no que isso tudo poderia atrapalhar o diálogo judaico-cristão, disse que o papa teve uma reação ambígua depois que a sessão acabou. Mas será que o papa deu conta de assistir ao filme todo? Não terá tirado um cochilo?

O melhor momento dessa polêmica, como gostam de dizer na tevê, foi de longe a entrevista do Clodovil (RedeTV) com o psicólogo e advogado Jacob Goldberg (uma mistura de Kojak com Michael Berryman). Depois de defender sua visão dita purista das Escrituras e atacar a violência espetaculosa do filme, afirmou convictamente de que se trata de uma cruzada anti-semita. Clodovil, sagaz, terminou contrariando seu convidado que se esforçava para ganhar-lhe a simpatia: "o problema de vocês (disse voltando-se para Goldberg) é que vocês têm muito amor-próprio... ah se o brasileiro tivesse um amor assim, que país não seria este..."

Agora convenhamos: os judeus devem estar furiosos mesmo, tanto que apontam para uma linhagem reacionária dentro do Catolicismo à qual Mel Gibson pertenceria. E para piorar, digamos, a mesma Hollywood que eles ajudaram a construir e da qual são "acionistas" majoritários (desculpem o trocadilho), essa mesma indústria acabou servindo de veículo para a suposta mensagem anti-semita. Gostaria de saber o que o bom e velho Salomão teria a dizer sobre esse assunto...

O divino e o mundano em Marianne Moore

Marianne Moore mostrou o que a poesia poderia ser se não se chamasse poesia. Moderna, subversiva e fundamentalmente reacionária, sua obra é uma negação do lirismo convencional. Miss Moore era uma espécie de vitoriana culta dos tempos modernos. Tanto quanto pude deduzir de sua vida e sua obra sei apenas que era, antes de tudo, uma mulher boa de prosa (como dizem lá em Minas). Além disso, gostava de fazer sozinha suas visitas aos outros e tinha sempre o cuidado de "tomar sua presa em privado". Seus poemas são o momento privilegiado da combinação de uma observação aguda e contundente com o que há de mais frívolo ou supérfluo nesse mundo. Para ela a poesia nada mais era do que a expressão daqueles que realmente têm uma queda pelo genuíno, e só. Não tem pretensões míticas como seus antecessores tiveram. Sendo assim, sua poesia pode perder em plasticidade, metáforas bombásticas, mas em contrapartida seus jogos conceituais (que levam alguns a classificá-la como metafísica) e sua sintaxe desconcertante demonstram com pertinência como toda lógica está necessariamente imersa num grande vazio.

Porcos-joalheiros

O que amas de verdade permanece, o resto é escória (Ezra Pound, The Cantos, LXXXI)

As conseqüências mais indesejáveis de atirar pérolas aos porcos, já dizia meu velho amigo J., é que esses porcos, não raro, podem ser porcos-joalheiros. Isso acontece quando temos a impressão de que o sujeito cuspiu no prato que lhe oferecemos. Ou pior: os porcos joalheiros não fazem a menor idéia do que seja aquilo que lhes atiramos, mas sabem, segundo o ofício mesquinho da vida que levam, que aquilo tem um valor corrente (de uma jóia ou moeda). Assim, aquilo cujo valor está intimamente ligado à nossa pessoa, a estima que investimos nesses suínos ao presenteá-los com um objeto ou conhecimento, corre o risco de se ver barganhado diante de nossos olhos. A inveja encontra morada precisamente no desconhecimento da razão da felicidade do outro. Assim, invejosos, elegemos um responsável por essa felicidade, um objeto, humano ou não, o qual almejamos como chave para a felicidade nossa também. Contudo, no fundo não sabemos porque o outro é feliz com aquilo e quando temos esse objeto em nossas mãos só podemos desfrutá-lo parcial e superficialmente (e sempre na presença do outro, claro). Os porcos aos quais atiramos nossas pérolas são aqueles mesmos que outrora chapinhavam na lama da ignorância e insensibilidade, mas que sempre manterão essa relação especulativa em relação ao outro que invejam. Se aquilo agrada àquela pessoa, deve ser valioso então! Não serão eles os "atravessadores" da verdade?