Mise-en-scène e saídas de estilo

O que fazer quando a inspiração não ajuda? Ou como proceder quando a técnica fica desorientada sem ter no que se aplicar? "Não tenho nada a dizer mas estou dizendo" (John Cage), mas não é bem esse o caso: é claro que se diz algo quando alguém se põe a dizer alguma coisa. É óbvio e insofismável.

O que fazer então quando já se disse o bastante? Calar? Qual o momento certo para abandonar a cena, o campo ou o palco, seja o que for, mas quando? Quando dar a vez aos coadjuvantes? Seja a chave de ouro de um soneto ou um pedido de substituição no segundo tempo, o que caracteriza um bom arremate? Será a idéia de desfecho uma obsessão na América? Hollywood, por exemplo, acredita que um bom desfecho só pode vir depois de um grande clímax. Já a escola francesa, de um modo geral, recorria a um fade silencioso e polido. E o que dizer de Charles Chaplin então, que criou uma grande tradição de vagabundos cinematográficos que sempre acabam tristes e sem a mocinha? Aliás: quem tem medo de finais felizes?

"Pois, se é verdade que aqueles

que são escravos de sua melancolia, seres engolfados em suas mágoas, revelam uma série de fragilidades, é igualmente verdade que a diversificação de melancolias, variação na tristeza, refinamento na mágoa ou luto são a marca de uma humanidade que seguramente não é triunfante, mas sutil, combativa e criativa."

Julia Kristeva, in Black Sun.

Infelizmente não temos muitas dessas por aqui. E se nunca a vimos, então a palavra é obscura. Segue uma tentativa de tradução:

A AVELEIRA EM FLOR


Em meio
ao
verde

velho
e firme
brilho

de um ramo
partido
vem

doce e
branco
Maio

outra vez.


(William Carlos Williams, trad. Edgard Murano Fares Filho)

A nostalgia do Isley Brothers

Como não poderia deixar de ser na Black Music, os irmãos Isley começaram cedo a veicular suas canções cheias de cor e de alma através do estilo soul... Mais tarde, porém, esse pequeno trio em família cresceria e na década seguinte seria responsável por um sem número de hits que, embora vendessem muito bem, carregariam para sempre a marca registrada do conjunto: falsetes, arranjos suntuosos, romantismo e muito funk (tudo isso sem concessões). Vale lembrar: um tal de Jimmy James contribuiu muito para a formação inicial do conjunto (ele mais tarde trocaria o "James" por "Hendrix"...)

O som desses caras, sem dúvida, remonta a um tempo que de fato não vivi (mas que hoje começamos a viver novamente com a ressurgência do estilo) quando os djs queriam deixar um clima mais romântico botando um Isley ao fundo. Canções como "Contagious", por exemplo, de repente trazem de volta toda aquela atmosfera dos anos 70 com um ritmo que oscila entre o charme e o funk. Ou melhor: imaginem uma manhã de sol na periferia, você descendo pra Santos no seu opalão bege ouvindo Isley Brothers (ah já não fazem mais black como antigamente...)

Numa noite chuvosa...

Em sp, quando chove, há uma perceptível ressurgência de leads do tipo "chuva castiga sp" (um castigo para quem lê, obviamente). Mas embora falte criatividade para a imprensa comunitária, como ficar indiferente à inspiração de uma noite chuvosa?

Rastro

Ó, Senhor, livrai-me do homem de intenções excelentes e coração impuro: pois o coração engana e é desesperadamente malicioso (T. S. Eliot, Corais de "O Rochedo")

Ah, se essa vida é uma trilha que a gente não sabe aonde vai dar, há certamente sinais pelos quais podemos nos guiar. Mas cuidado: muitos são os falsos sinais que não passam de desvios, percalços, atalhos... Desse modo, deixam de ser úteis e de rastro passam a ser resíduo, detrito. Ou seja: eu falo das pessoas que nos legam, por onde quer passem, o rastro peculiar de sua existência...

Em verdade vos digo: convém vivermos da maneira mais sutil e concisa, sem deixar indícios inúteis às nossas costas (sem deixar lixo). Não é à toa que o tal desodorante tinha o nome de "rastro" (uma fragrância só deve ser sentida quando chegamos bem perto de sua origem, nunca à distância...)

Há pessoas que vivem esbaforidamente e suas maneiras são tão suaves como as de um tornado. Destruir é mais fácil do que criar, eis a máxima do zagueiro na defensiva (e o sentimentalismo vem depois). Abaixo a procrastinação!

Para esses que têm mordomos mas não têm amigos, eu digo: não adiem seu destino. Não temos mordomos mas temos amigos. Axé, velho Ezra!

A falta de assunto,

eis o que me incomoda, mas não tenho saída. Falar sobre música de novo? E quer coisa mais manjada do que falar da própria impotência diante da Musa? Viagra? Sexual healing? Falar sobre o que então? Pegar uma notícia na Reuters, por exemplo, e parafraseá-la? (better mendacities than the classics in paraphrase!) Se o que chamam de história é fofoca, então o jornalismo é uma fofoca ainda mais mesquinha: porque se a história é um inventário dos deslizes da humanidade, então o jornalismo é uma lista de supermercado dos deslizes da sociedade (ou da comunidade).

Falar sobre cinema... haja saco. E só pra registrar: fui ver o "Cristo" de Mel Gibson e digo a vocês com convicção, don't believe the hype. Já viram aqueles caras que se penduram por ganchos cravados na pele? Acho que nem só eles gostaram do filme. A paixão do Jesus de Gibson é por sangue e efeitos especiais. Mas vai ver que era isso o que ele queria mesmo. Talvez tenha sido uma saída retórica usada pelo diretor para resgatar a suposta mensagem religiosa que há muito tempo vem sendo soterrada pelo mito edulcorado cristão de um Jesus que morre doce e gloriosamente. Aqui no Brasil, e fica a sugestão, que tal se fizessem uma "Paixão de Tiradentes"? Aliás, meu pai me disse ao telefone que achou o filme "horrível". Ah, amarga doutrina a de ter uma opinião formada sobre cinema!

O virtuosismo do jazz está de volta

Pra quem acha que o jazz é uma espécie de arte perdida, remota, em verdade vos digo que ele está de volta... Era justamente isso que o bebop procurava: o caráter excludente do virtuosismo. Charlie Parker disse que o bebop não era jazz e, de fato, seu estilo era praticamente impossível de ser imitado à risca. É só pensarmos em John Coltrane, Sonny Stitt, Thelonious Monk... Contudo, logo o jazz seria tolhido pelo vício maneirista, cheio de chavões e riffs manjados, sob o pretexto de um "intimismo" ou "suavidade". Penso que o verdadeiro jazz ou blues ou r&b (seja o que for) ainda está vivo e continua com aquele seu mesmo caráter de busca e superação (de novidade, diga-se de passagem) mesmo que o objeto dessa busca seja cada vez mais abstrato. Vejam: agora são os djs aqueles músicos hábeis de outrora. O imaginário mudou. Se numa outra época eram usados riffs de guitarra ou de sax, hoje os temas são retomados como samples. Os "motivos" dessa cultura do negro na américa deixam de ser standards e voltam à tona sob a forma de loops numa bricolagem sonora (uau, nunca usei tantos estrangeirismos num só parágrafo!). Isso pra não falar do supra-sumo estilístico do "scratch", qual seja, do registro mais cabal para o ouvinte de que ele está ouvindo o passado...