Shake Sauvage: French Soundtracks 1968 - 1973

Coletânea de trilhas para filmes franceses
combina acid jazz e grooves raros


Na linha de compositores como Piero Piccioni e Jean-Pierre Mirouze, o álbum Shake Sauvage é uma coletânea que reúne grooves raros e funks temperados com metais e percussão africana. Na maioria dos temas há um flerte generalizado com outros gêneros como jazz, easytempo, bikini music e até o candomblé. Palavras-chave: maio 68, casamento coletivo.

O mesmo

Conhece o rancor como à palma da mão. Obstinado, onde o ódio estiver ele irá. É um doido varrido, raivoso - tolo - que em seus dias mais doces pecou pelo mau gênio. É tão intenso que deixa tonto.

Desde que o conheci ouço dizer que vai escrever um romance. É curioso vê-lo organizar em fichas a vida de personagens que nunca entraram em cena e fazer versos que ninguém mais ousaria (míope leitor de si mesmo), essa espécie de camicase que ensaia a própria morte várias vezes, e que nunca termina o que se põe a dizer.

No osso

A expressão "chegar ao osso" não é banal nem gratuita: nos conduz à revelação última, íntima (caídos todos os véus); manifesta o desejo de atingir o núcleo duro, o tutano das coisas. Segundo a metáfora anatômica, "linguagem de medulas e espinhas". É a desconstrução do objeto até chegar à estrutura seca, ou o que o açougueiro faz quando livra a carne da gordura e atira o osso aos cães.

Abaixo, minha tradução (incompleta) para o poema Bone dreams (Sonhos ósseos), do poeta irlandês Seamus Heaney:


*

SONHOS ÓSSEOS

I

Osso branco encontrado
no pasto:
a áspera, porosa
língua do toque

e sua impressão amarela
grelhada na grama—
pequeno resíduo de um naufrágio.
Frio como pedra,

duro de encontrar, pepita
de giz
que toco outra vez
e a refresco

na atiradeira das idéias
para cravá-la na Inglaterra
e seguir seus saltos
em campos estrangeiros.

II

Casa óssea:
um esqueleto
nas velhas masmorras
da língua.

Refuto
com as dicções
os dosséis elisabetanos.
Os artifícios dos normandos,

as primaveras eróticas
da Provença
e o latim de hera
dos homens da igreja

ao som metálico
da pá, clarão
do aço consonantal
crivando a linha.

(...)

"O destino de uma literatura está preso aos seus grandes homens. Eles constituem, sem dúvida, o reflexo de um corte social e econômico, mas sem a força expressional de sua personalidade, outros podiam ser os caminhos abertos para o futuro. Sem Whitman talvez a América do Norte fracassasse por muito tempo na mão adunca de seus pioneiros, longe de encontrar a sua missão de democracia e humanidade. A presença de um grande escritor impossibilita a inflação dos valores medíocres e põe sempre no julgamento crítico um ponto alto de referência e de destino."

(Oswald de Andrade, Atualidade d'Os Sertões em Feira das Sextas. Ed. Globo)

Da série "Teses da PUC que até gostaríamos de ler"

This is a man's world, de James Brown


Nesta peça musical podemos encontrar a mais bem-acabada afirmação do discurso afro-americano fundamentalista que estabeleceu novos parâmetros para a música americana e até européia. Uma vez que seu legado musical refaz (à sua maneira, é claro) todo o percurso da história musical, de Bach a Schoenberg e seus discípulos serialistas, James Brown é a cereja do bolo que a música negra ora confeitava para ouvidos mais contemporâneos, desejosos de uma música tão complexa quanto a produzida pela erudição européia, porém menos consciente de si e mais intuitiva e visceral. O racionalismo do Continente Antigo, que aliás já tinha morrido inclusive em sua terra natal, encontra finalmente na América uma expressão, uma voz ou, ainda, um símbolo, capaz de sintetizar as influências européias sobre a percussão explosiva do continente africano.

*

Na canção It's A Man's, Man's, Man's World [O mundo é dos homens] Brown contrapõe verso a verso as principais diferenças (ou as funções sociais mais características) de cada um dos sexos, sempre sob o ponto-de-vista peculiar do Protestantismo norte-americano enraizado nas texturas percusivas africanas. O mundo lá fora é árido, feito para homens fortes, brutos. Mas o que seria de toda essa força e progresso acaso inexistissem as mulheres?


James Brown - It's A Man's, Man's, Man's World

This is a man's world
This is a man's world
But it would be nothing
Nothing without a woman to care

You see man made the cars
To take us over the world
Man made the train
To carry the heavy load
Man made the electro lights
To take us out of the dark
Man made the bullet for the war
Like Noah made the ark
This is a man's man's, man's world
But it would be nothing
Nothing without a woman to care

Man thinks of our little baby girls And the baby boys
Man make them happy 'Cause man makes them toys
And aher man make everything, everything he can
You know that man makes money to buy from other man
This is a man's world
But it would be nothing, nothing
Not one little thing
Without a woman to care

He's lost in the wilderness
He's lost in the bitterness
He's lost, lost and .....

De Sartre aos emos

Não é possível, deve estar faltando um que de Bukowski à minha prosa. Hoje tantos compram a idéia de ser beat, loser ou, em bom português, um fracasso verdadeiro... E acham que para isso precisam bradar aos sete ventos que são adictos, boêmios e sozinhos sem motivo. Evidentemente tudo uma questão de estilo. Alegam não terem se enquadrado e vêem a vida de uma perspectiva mais sombria, com assombrosos arroubos de rock 'n' roll e existencialismo. E sempre, sempre aquele mesmo olhar blasé. Nada mudou, de Sartre aos emos.

De cerejas tatuadas nas espáduas, além de asas, metais indefectíveis trespassavam-lhe as narinas e sobrancelhas. Ao entrar na adolescência adotou uma postura praticamente imprevisível e passou a ouvir rockabilly, neo-swing e ia a baladinhas do tipo Milo, Funhouse (e uns outros mais alternativos.) Maconha é coisa de preto, ouvia nos lugares aonde ia. E nós, me disse um dia, nós gostamos é dos psico-ativos. Naquela época ela queria cobrir o braço, e já tinha dois desenhos em vista. Nada de tattoos de dragão, já que não abre mão da franja à moda Bettie Page.

O blues curtido de Odetta

Ouvir o blues ancestral & primitivo de Odetta é uma experiência espiritual. Em incursões breves, com canções de 2 a 3 minutos, ela canta passagens bíblicas e lamentações com uma fé e perseverança que já prenunciavam o funk e o soul anos depois. Esta blueswoman de timbre grave e ritmo forte logra ter inspirado gente como Bob Dylan e Janis Joplin. No álbum Odetta Sings Ballads and Blues, a impressão que se tem é a do mais depurado espírito protestante norte-americano, uma voz que parece vir dos recôncavos da alma, com um timbre naturalmente granulado e gutural. Ouça a faixa Joshua aqui.

Progressive Zombie

Como o próprio título sugere, a trilha sonora do filme Zombie Holocaust é um bomba. Mas no bom sentido. O compositor italiano Nico Fidenco assina uma trilha puramente sensorial, pulsante e claustrofóbica, com toques de jazz, funk, jungle e batidas obstinadas que muitas vezes lembram o techno. Obra exploitation da mais suprema tosqueira e oportunismo, tem a manha de combinar dois outros sub-subgêneros aparentemente inconciliáveis numa só história: canibais & mortos-vivos. Para fazer download da faixa 8, clique aqui.

Battle Royale ou "gincana sádica"

Chega em DVD ao Brasil com sete anos de atraso mais um filme ultra-violento vindo do Oriente: Battle Royale (Batoru rowaiaru, 2000), dirigido pelo japonês Kinji Fukasaku, conta a história de um grupo de estudantes que, num Japão totalitário e dominado por "adultos", é raptado para uma ilha deserta afim de participarem de um grotesco reality-show do qual somente um sairá vivo. Até aí é perigoso pensar que se trate de um filme à la Jogos Mortais, com sua estética de parque de diversões. Longe disso, Battle Royale é uma mistura bem-sucedida de diversos gêneros tais como o mangá, paixões estudantis, uniformes à moda RBD, tiros, sangue, vísceras, gritos histéricos e tramas rocambolescas. Enfim, uma combinação de ingredientes inusitada que, no final das contas, acaba dando certo nas mãos de um diretor frenético como Fukasaku.

E à frente da sádica empreitada, feito um Big Brother sanguinário, o ator Takeshi Kitano (de Zatoichi) interpreta um professor outrora ridicularizado pelos alunos, que nos faz lembrar de alguns ditadores que o Oriente já abrigou. As regras do jogo são bem simples: presos numa ilha e controlados por uma coleira magnética (que os degola caso ultrapassem os limites da praia), os estudantes são forçados a se matarem uns aos outros para saírem ilesos do jogo. Em muitos momentos o filme nos lembra o seriado Lost, que se vale de flashbacks a todo instante para nos remeter à vida anterior de seus protagonistas e explicar suas motivações. Garotas de saia colegial e meias brancas*, bem ao gosto perverso japonês, e rapazes uniformizados são abruptamente levados a se matarem com requintes de crueldade, seja com metralhadoras, machados, facas ou revólveres, como se de repente um Robert Rodriguez passasse a dirigir o seriado Malhação da Rede Globo. E a cada morte, as baixas são mostradas sob a forma de estatísticas na tela, como se num videogame ou intervalo de jogo de futebol.

BR acaba sendo uma leitura muito peculiar feita pelo Japão do fenônemo rebelde, minissaias & gravatas. Quem não se lembra daqueles programas de disputas entre colégios? Só que desta vez com metralhadoras e facas.

Introdução ao "Dicionário de Corporativês"

E no início era o mundo. Só depois é que veio a palavra "corporativo." Com esta, mais tarde, viriam outras, todas elas pomposas e cheias de virtude (nomes bonitos para coisas que já existiam) e quiseram os homens de terno e gravata que se tornassem norma, uma espécie de insígnia, e atrás dela toda uma sorte, "todo um processo" de coisas, complexos, adjetivos desonestos, essências, carícias, positivismos, maneirismos (sempre o político & correto.)

E pobre de nós, brasileiros, que admitimos em nossas vidas um léxico, convenhamos, intrusivo, que pode soar natural em inglês mas em português soa arrivista. Como diria o homem de capacete do ABC a brandir com seu megafone "malditos pelegos!" Enquanto isso senhores de terno e gravata ao redor da mesa gastam horas reunidos a debater em vão, a teorizar sobre o intangível. Líderes, resultados e trabalho em equipe: na verdade todos cúmplices da máxima segundo a qual não há receita para o sucesso & poder da qual se exclua a desumanização do indivíduo.