"O destino de uma literatura está preso aos seus grandes homens. Eles constituem, sem dúvida, o reflexo de um corte social e econômico, mas sem a força expressional de sua personalidade, outros podiam ser os caminhos abertos para o futuro. Sem Whitman talvez a América do Norte fracassasse por muito tempo na mão adunca de seus pioneiros, longe de encontrar a sua missão de democracia e humanidade. A presença de um grande escritor impossibilita a inflação dos valores medíocres e põe sempre no julgamento crítico um ponto alto de referência e de destino."

(Oswald de Andrade, Atualidade d'Os Sertões em Feira das Sextas. Ed. Globo)

Da série "Teses da PUC que até gostaríamos de ler"

This is a man's world, de James Brown


Nesta peça musical podemos encontrar a mais bem-acabada afirmação do discurso afro-americano fundamentalista que estabeleceu novos parâmetros para a música americana e até européia. Uma vez que seu legado musical refaz (à sua maneira, é claro) todo o percurso da história musical, de Bach a Schoenberg e seus discípulos serialistas, James Brown é a cereja do bolo que a música negra ora confeitava para ouvidos mais contemporâneos, desejosos de uma música tão complexa quanto a produzida pela erudição européia, porém menos consciente de si e mais intuitiva e visceral. O racionalismo do Continente Antigo, que aliás já tinha morrido inclusive em sua terra natal, encontra finalmente na América uma expressão, uma voz ou, ainda, um símbolo, capaz de sintetizar as influências européias sobre a percussão explosiva do continente africano.

*

Na canção It's A Man's, Man's, Man's World [O mundo é dos homens] Brown contrapõe verso a verso as principais diferenças (ou as funções sociais mais características) de cada um dos sexos, sempre sob o ponto-de-vista peculiar do Protestantismo norte-americano enraizado nas texturas percusivas africanas. O mundo lá fora é árido, feito para homens fortes, brutos. Mas o que seria de toda essa força e progresso acaso inexistissem as mulheres?


James Brown - It's A Man's, Man's, Man's World

This is a man's world
This is a man's world
But it would be nothing
Nothing without a woman to care

You see man made the cars
To take us over the world
Man made the train
To carry the heavy load
Man made the electro lights
To take us out of the dark
Man made the bullet for the war
Like Noah made the ark
This is a man's man's, man's world
But it would be nothing
Nothing without a woman to care

Man thinks of our little baby girls And the baby boys
Man make them happy 'Cause man makes them toys
And aher man make everything, everything he can
You know that man makes money to buy from other man
This is a man's world
But it would be nothing, nothing
Not one little thing
Without a woman to care

He's lost in the wilderness
He's lost in the bitterness
He's lost, lost and .....

De Sartre aos emos

Não é possível, deve estar faltando um que de Bukowski à minha prosa. Hoje tantos compram a idéia de ser beat, loser ou, em bom português, um fracasso verdadeiro... E acham que para isso precisam bradar aos sete ventos que são adictos, boêmios e sozinhos sem motivo. Evidentemente tudo uma questão de estilo. Alegam não terem se enquadrado e vêem a vida de uma perspectiva mais sombria, com assombrosos arroubos de rock 'n' roll e existencialismo. E sempre, sempre aquele mesmo olhar blasé. Nada mudou, de Sartre aos emos.

De cerejas tatuadas nas espáduas, além de asas, metais indefectíveis trespassavam-lhe as narinas e sobrancelhas. Ao entrar na adolescência adotou uma postura praticamente imprevisível e passou a ouvir rockabilly, neo-swing e ia a baladinhas do tipo Milo, Funhouse (e uns outros mais alternativos.) Maconha é coisa de preto, ouvia nos lugares aonde ia. E nós, me disse um dia, nós gostamos é dos psico-ativos. Naquela época ela queria cobrir o braço, e já tinha dois desenhos em vista. Nada de tattoos de dragão, já que não abre mão da franja à moda Bettie Page.

O blues curtido de Odetta

Ouvir o blues ancestral & primitivo de Odetta é uma experiência espiritual. Em incursões breves, com canções de 2 a 3 minutos, ela canta passagens bíblicas e lamentações com uma fé e perseverança que já prenunciavam o funk e o soul anos depois. Esta blueswoman de timbre grave e ritmo forte logra ter inspirado gente como Bob Dylan e Janis Joplin. No álbum Odetta Sings Ballads and Blues, a impressão que se tem é a do mais depurado espírito protestante norte-americano, uma voz que parece vir dos recôncavos da alma, com um timbre naturalmente granulado e gutural. Ouça a faixa Joshua aqui.

Progressive Zombie

Como o próprio título sugere, a trilha sonora do filme Zombie Holocaust é um bomba. Mas no bom sentido. O compositor italiano Nico Fidenco assina uma trilha puramente sensorial, pulsante e claustrofóbica, com toques de jazz, funk, jungle e batidas obstinadas que muitas vezes lembram o techno. Obra exploitation da mais suprema tosqueira e oportunismo, tem a manha de combinar dois outros sub-subgêneros aparentemente inconciliáveis numa só história: canibais & mortos-vivos. Para fazer download da faixa 8, clique aqui.

Battle Royale ou "gincana sádica"

Chega em DVD ao Brasil com sete anos de atraso mais um filme ultra-violento vindo do Oriente: Battle Royale (Batoru rowaiaru, 2000), dirigido pelo japonês Kinji Fukasaku, conta a história de um grupo de estudantes que, num Japão totalitário e dominado por "adultos", é raptado para uma ilha deserta afim de participarem de um grotesco reality-show do qual somente um sairá vivo. Até aí é perigoso pensar que se trate de um filme à la Jogos Mortais, com sua estética de parque de diversões. Longe disso, Battle Royale é uma mistura bem-sucedida de diversos gêneros tais como o mangá, paixões estudantis, uniformes à moda RBD, tiros, sangue, vísceras, gritos histéricos e tramas rocambolescas. Enfim, uma combinação de ingredientes inusitada que, no final das contas, acaba dando certo nas mãos de um diretor frenético como Fukasaku.

E à frente da sádica empreitada, feito um Big Brother sanguinário, o ator Takeshi Kitano (de Zatoichi) interpreta um professor outrora ridicularizado pelos alunos, que nos faz lembrar de alguns ditadores que o Oriente já abrigou. As regras do jogo são bem simples: presos numa ilha e controlados por uma coleira magnética (que os degola caso ultrapassem os limites da praia), os estudantes são forçados a se matarem uns aos outros para saírem ilesos do jogo. Em muitos momentos o filme nos lembra o seriado Lost, que se vale de flashbacks a todo instante para nos remeter à vida anterior de seus protagonistas e explicar suas motivações. Garotas de saia colegial e meias brancas*, bem ao gosto perverso japonês, e rapazes uniformizados são abruptamente levados a se matarem com requintes de crueldade, seja com metralhadoras, machados, facas ou revólveres, como se de repente um Robert Rodriguez passasse a dirigir o seriado Malhação da Rede Globo. E a cada morte, as baixas são mostradas sob a forma de estatísticas na tela, como se num videogame ou intervalo de jogo de futebol.

BR acaba sendo uma leitura muito peculiar feita pelo Japão do fenônemo rebelde, minissaias & gravatas. Quem não se lembra daqueles programas de disputas entre colégios? Só que desta vez com metralhadoras e facas.

Introdução ao "Dicionário de Corporativês"

E no início era o mundo. Só depois é que veio a palavra "corporativo." Com esta, mais tarde, viriam outras, todas elas pomposas e cheias de virtude (nomes bonitos para coisas que já existiam) e quiseram os homens de terno e gravata que se tornassem norma, uma espécie de insígnia, e atrás dela toda uma sorte, "todo um processo" de coisas, complexos, adjetivos desonestos, essências, carícias, positivismos, maneirismos (sempre o político & correto.)

E pobre de nós, brasileiros, que admitimos em nossas vidas um léxico, convenhamos, intrusivo, que pode soar natural em inglês mas em português soa arrivista. Como diria o homem de capacete do ABC a brandir com seu megafone "malditos pelegos!" Enquanto isso senhores de terno e gravata ao redor da mesa gastam horas reunidos a debater em vão, a teorizar sobre o intangível. Líderes, resultados e trabalho em equipe: na verdade todos cúmplices da máxima segundo a qual não há receita para o sucesso & poder da qual se exclua a desumanização do indivíduo.

O humor extremo de Borat

Mistura de documentário e ficção, Borat leva o sarcasmo às últimas conseqüências

O filme Borat - O Segundo Melhor Repórter do Glorioso País Cazaquistão Viaja à América acaba de chegar em definitivo às telas de todo o Brasil. Dirigido por Larry Charles, que já atuou e escreveu episódios do Seinfeld, Borat é uma verdadeira antologia de gags que reúne e potencializa o melhor do humor gonzo já visto no cinema e na TV. A performance politicamente incorreta de Sacha Baron Cohen, que encarna o histriônico jornalista cazaque que dá nome ao filme, consegue tornar tênue (praticamente invisível) a cicatriz entre as instâncias do "combinado" (leia-se produzido) e do espontâneo, com um tal gosto pelo extremo e com tamanha subversão, que logra transcender o mero entretenimento para se tornar uma das críticas mais duras e consistentes ao Ocidente de que se tem notícia.

Ao se passar pelo jornalista cazaque pornomaníaco, misógino, anti-semita e racista (e o que mais?), Sacha constitui-se uma verdadeira isca para o discurso voraz e preconceituoso do homem médio americano que, ao comprar a idéia do homem tosco a ser civilizado, acaba expondo sua faceta mais mesquinha e nefasta. A seqüência em que canta o hino com a letra trocada durante um rodeio no Texas é prova disso. Reza a lenda que Sacha e sua equipe precisaram
sair às pressas do local para não serem linchados. Um exagero. No entanto é difícil de se dizer o que foi armado e o que não foi por seus realizadores. Neste aspecto, Borat tem momentos surreais, tais como aquele em que o homem por trás do bigode se atraca com seu produtor obeso no quarto do hotel, ambos nus e devidamente tarjados, na sublimação mais sublime da homossexualidade jamais levada a cabo por dois humoristas.

Seu anti-semitismo grotesco e escandaloso seria impensável se o próprio Sacha Baron Cohen não fosse judeu. Sob uma estampa histriônica e escatológica, Borat faz rir e pensar com seu sarcasmo profundo e sutil, se é que se pode encontrar sutileza nas maneiras abertas e francas do personagem. Borat é, afinal de contas, uma caricatura mordaz e cretina do mito que se criou em torno dos povos da Ásia Central, supostamente incivilizados e bárbaros. Através do exagero propositado das maneiras de seu personagem, o roteiro bem construído aliado à atuação genuína de Sacha constituem-se um pastiche dos road-movies americanos. De resto, pode-se dizer que Borat é puro semblante, impassível em sua "ingenuidade" diante de qualquer grau de civilidade (seja numa conversa com um cowboy fascista ou rodeado por feministas sisudas), e sua presença em cena é praticamente uma intervenção, termo aí despido de qualquer pretensão contestadora ou vanguardista. Híbrido de pegadinhas à la João Kléber, jornalismo gonzo à la Ernesto Varella e subversão à moda Lars Von Triers (vide Os Idiotas), Borat é cretino e sublime ao mesmo tempo.

Sabedoria boratiana (tiradas do site www.borat-quotes.com):

"Jagshemash! My name a Borat. I like you. I like sex. It's nice. These are my country of a Kazakhstan."

"My mother, she never love me. (Stifled chuckle) She say she wish she was raped by someone else."

"Now her vajine is loose like a wizard's sleeve."

"I hope President Bush drinks the blood of every man, woman, and child in Iraq!"

"My sister...she´s a...prostitute. (Answer: That´s sad, why?). She like to make money, high five!"

"May I ask you are a man who does with another man?"

Virtuosismo fin-de-siècle

Cheguei à conclusão de que vivemos numa época de abundância. Do quê? Não me perguntem. Mas sei que me cheira a tendência, o que não é de hoje. Não sei onde começou, mas a reconheço na prosa prolixa do último James Joyce; nos solos intermináveis e exaustivos do sax de John Coltrane; na pós-modernice histérica e errática dos que se pretendem vanguarda (ao mesmo tempo românticos e iconoclastas.)

Podemos perceber quando o mal é o virtuosismo à medida que a performance passa a ter mais importância que o propósito de sua existência. Na música, solos de guitarra que contemplem inúmeras escalas num tempo muito curto. Cantores que abusam do vibrato. Tudo muito pirotécnico, mas nenhuma propriedade.

No cinema, que tal os efeitos-especiais? Ou as tramas de Hollywood que se fecham, confudem, mas no final se resolvem com um deus ex-machina? (leia-se abdução ou o famoso "não passou de um sonho")

Diagnóstico

Fico pensando que para tudo há um grau de entropia, uma crônica do caos anunciada. A maioria dos grandes mestres chegaram a esse ponto, mas qual não foi sua maestria ao sublimá-lo? Não podemos eliminar o ruído de nossas vidas, pois sem ele nossos ouvidos jamais se acostumariam. O que seria do puro sem o impuro, do cult sem a corruptela? Sem os metais não saberíamos como é o timbre piano. De um lado Chet Baker, de outro James Brown. Ambos são necessários.

"Goodness is timeless" (W. H. Auden)

Arte é contenção, virtude. Há muito de moral em tudo isto. Não pode se tornar histérica, mecânica, evasiva. Quando deixa de ser virtude, de ter vontade sobre o caos, transforma-se em mania e obsessão, e perde sua beleza. A Musa é uma mulher faceira, não se deve melindrá-la com o excesso gratuito. É o que acontece quando perdemos a dimensão do que é ser diligente, algo próximo de Bach e sua vivacidade presumida no andamento de suas fugas e cantatas; nas aliterações persistentes da poesia homérica; no estalo de chicote das imagens de Shakespeare. Já não se pensa mais no produto acabado, final, que chegue a um ponto em que não são admitidos mais retoques. Digamos que o mal de nosso tempo é o que chamam de obra-aberta, essa tal "arte experimental."

Viva o prefeito! - parte II

Daqui a pouco teremos uma sitcom. Já ouço aquela voz manjada anunciando: "no episódio de hoje, nosso prefeito da pesada resolveu botar pra correr um manifestante muito louco que armou um plano sujo para sabotar sua visita a um posto de saúde, onde tuuuudo pode acontecer..." E pra disfarçar que ficou mesmo bolado com o caso, teve a pachorra de afirmar aos jornalistas: "Em nenhum momento eu o agredi; só pedi que se retirasse". Mas é um gentleman esse homem! (Clique aqui para assistir ao vídeo.)

Viva o prefeito!

A "piadinha" do Kassab (assim mesmo no diminutivo) pegou mal. Não porque tenha parado no Youtube. Nem também porque tenha sido de mau-gosto. Até foi. Mas não há dúvidas de que o pior de tudo nessa história foi o mis-en-scène do prefeito que, mesmo ciente das câmeras, não pôde evitar um certo quê de zombaria em seu comentário, vagamente histriônico, sobre o impacto do "buraco" do metrô na performance dos habitués dos motéis daquelas redondezas. "Quando veio o estrondo, imagina a zoeira que foi! Todo mundo saindo dos quartos..." E ao seu lado o colunista do Estadão Cesar Giobbi, impassível, tentando concluir seu panorama sobre a cidade e as árvores (e a falta que elas fazem.) Tudo absolutamente cômico e desajeitado, digno da Praça É Nossa.

Eu prefiro estar com você
(George Clinton / Bootsy Collins / Gary "Muddbone" Cooper)

"Eu prefiro estar com você" (tradução livre) é aquele refrão que não sai da cabeça depois que a gente ouve I'd rather be with you, do Funkadelic, grupo de funk liderado pelo genial George Clinton (ao lado de outros grandes nomes como Bootsie Collins, ex-James Brown funky people.) Se você prefere ouvir ao invés de ficar lendo esse monte de adjetivos que não nos remete a nada, clique aqui.